sexta-feira, 19 de junho de 2009

Felicia, de Botticelli



Pensava nela como se pensa no nascimento da Vênus, de Botticelli. Algo ruivo e inatingível, a pele tão clara de doer sem óculos. Como uma aparição divina, surgia no silêncio e enchia tudo de música. A voz, o farfalhar dos panos sintéticos, o bater impiedoso do salto pesado. Pisava como se gritasse "estou aqui" e mesmo um tapete de algodão doce tinha o eco dos corredores de hospital. Eu ali, com a expressão cansada dos anêmicos, sonhava ser um dia um átomo do que ela era.

Não era inveja, nem medo. Um pouco de curiosidade talvez. E muito, muito desejo. Mas isso eu só soube depois. Antes, a cena vinha bege como o cardigã da diretora da escola. Bege feito um peido embalsamado, sem luz nem emoção. Como só um bege sabe ser. Aos poucos, porém, as cores tingiam as imagens que eu invocava no escuro de depois das 10 da noite, no quarto em que eu sozinha conciliava o sono com dificuldade, fumava escondido e descobria prazeres com a alma pesada de culpa. As cores dela, nuances vermelhos, primárias todas e nenhuma fria. Até o azul era aquecido, naquele tom dos céus de brigadeiro.

Na escola, ela chegou depois de todas. Ano adentro, veio a freira principal - aquela para quem todas levantam quando chega - e disse: Felicia acaba de chegar à cidade e vai estudar com vocês. Felicia de cachos ruivos, olhos brilhantes e uma boca que ela insistia em lamber antes de falar. Lábios úmidos, excessivos, que me faziam pensar bobagens proibidas. A boca de Felicia lembrava um número, que virando e desvirando é sempre igual. Um número gêmeo, tipo dois fetos numa mesma barriga. E que fazia ruborizar minhas tias. Mas o porquê disso eu soube depois.

Todos os dias, Felicia existia, e eu observava. Fazia amigos como quem vai à feira e enche a sacola de tomates. Pisava com aquele saltão e a corte se curvava em reverência. Não era mais velha, nem mais inteligente e - tenho quase certeza - não era mais rica. Mas tinha um jeito, uma maneira, um saber fazer inexplicável que deixava as gurias da oitava B e os guris do primeiro A com o queixo tremendo e as mãos suando. E o que mais me intrigava é que ela nem precisava rebolar para isso. Felicia existia, e eu observava de longe. Esquadrinhava, analisava, fazia cálculos. Sutiã 42, mas quase pedindo um 44. Calça 38 ali, espremida. Pés 36, quem sabe. A alma dela é que eu não podia saber o número, mas arriscava a cor. A alma de Felicia devia ser o reflexo de um prisma ao sol. Como o arco-íris que surgia depois daquela chuva de verão.

Depois de alguns meses, quando eu pensava ser Felicia uma obsessão ou uma estátua de mármore italiano, eu tive a visão que um mortal jamais pensou ter. No vestiário da escola, vazio porque há 10 minutos a aula de educação física começara, eu vi a Vênus.
Atrasada como eu, talvez cinco minutos a menos, Felicia perdera a chamada e decidira ficar por ali mesmo, à espera da próxima aula. Ela fumava sem medo das freiras, sem medo de nada. Tragava devagar e soprava fazendo rodinhas no ar. Nua, ou quase, ela estava espalhada no banco de madeira entre os armários - e na hora pensei que ninguém ouviria o pisar das botas. Aquele ser divino e branco tinha seios esculpidos pelo mais perfeito dos artistas. E um ventre de fazer inveja a um fio de prumo. Usava calcinhas vermelhas cavadas, rendadas e dadas a toda imaginação. Oferecia pernas roliças, tornozelos sem máculas e aqueles pés que diziam "estou aqui".

Tremi, vergonha e surpresa presas na garganta embolaram o "oi" que saiu como um "me desculpe". Pensei em sair rápido, mas ela sorriu com os olhos, daquele jeito que não precisa mover os lábios, nem os grandes, nem os pequenos, só um pouco da sobrancelha arqueando. O branco imenso do vestiário como testemunha silenciosa, ao longe o risinho histérico das meninas, mas tudo o que eu podia ouvir era o meu coração acelerado, fazia tanto barulho que eu tinha pânico de Felicia ouvir.

Aí, ela falou. Com aquela voz de música, um pouco rouca como quando se atende o telefone ao acordar de ressaca, um sussurro pecaminoso - e não sei por que eu pensava nessas coisas quando olhava pra ela. "Você também se atrasou, dá um pega aqui", ofereceu o cigarro na segundinha. Pensei dizer "não fumo" porque era verdade, mas peguei e traguei e tossi do jeito que os tuberculosos tossiram na Santa Casa quando as freiras nos levaram visitar. Ela riu, mas não com deboche, só riu parecendo a mãe que ri complacente do filho que dá o primeiro passinho e cai sentado. "Vem que eu te ensino". E tragou, respirou pela boca e a fumaça sumiu por segundos, aparecendo de novo num rolo cor-de-fantasma. Juro que não quis, mas nessa hora, nesse segundo eu olhei os seios dela e reparei que eles eram enfeitados por rosas abertas e não em botão. Rosas cheias de pétalas, de uma cor suave, e de novo pensei bobagens e senti um calor estranho um pouco abaixo da cintura, como se quisesse fazer xixi. Mas não era, só que isso eu soube depois.

Contava os minutos para que chegasse o escuro de depois das 10, quando eu fecharia os olhos e pensaria nela. Pensar eu podia, ninguém podia saber. Só que pensar era pouco, eu precisava de mais e isso me fazia lembrar o Galego do bar da Zana, que pedia mais uma e a Zana dizia chega.

Uma manhã, perto da aula de educação física, respirei fundo e falei: preciso te contar um segredo, Felicia. Vamos no vestiário durante a aula. E ela fez cara de espanto, mas foi. Lá, no silêncio branco, ela parada em pé com os olhos curiosos e a boca muda, os lábios aqueles de tantos que são, pensei "azar" e disse: "Você já beijou alguém?" Diante do quase riso dela, do jeito sábio, quase desmaio e emendo "na boca, com língua". Foi aí que tudo o que eu precisava saber eu soube. Tipo fada, ninfa, Vênus, ela chegou tão perto que senti o cheirinho do xampu e me tomou de leve e me pousou a boca de muitos lábios, primeiro como um pássaro novinho pousa num telhado desconhecido, depois como um morcego invade o quarto de uma virgem pagã. Uma viagem longa, descrever é complicado, mas até hoje eu tento e cada vez é diferente. Tinha música, cores e um gosto de babaloo de uva. Foi tudo tão rápido, do beijo para o resto, que a sensação de fazer xixi se fez molhada mas sem xixi de verdade, era um quente em ondas enquanto ela tirava a minha blusa e a dela e a gente se abraçava numa só, o jeans descendo fácil e os pêlos dela ásperos contra os meus. Na hora não pensei em pecado, nem proibido, só que estava bom e que eu queria mais como o Galego no bar da Zana. Imaginei que meus olhos tinham a velocidade da luz quando vi, num raio, que os lábios outros de Felicia tinham pêlos cor de fogo e formavam um triângulo quadrilátero. Talvez por isso eu ardesse tanto, eu queimasse sem sofrer, eu pedisse só mais uma dose. Ouvi quando ela suspirou, esperta para que ninguém ouvisse, apenas suspirou. Eu, meus líquidos dos prazeres que pesavam na alma escorrendo pelas pernas, ainda me sentia o Galego precisando de mais. Depois do suspiro, Felicia parou. Vestiu-se depressa e nem viu que eu estava ali, com minhas rosas nunca mais em botão e meus lábios todos querendo dizer tanto... Hoje eu já sei por quê.

* Texto maravilhosamente e excitantemente cedido pela minha querida amiga Chuchi Silva

3 comentários:

  1. engraçado... logo no primeiro paragrafo já sabia que não era feito pela minha rainha, e no segundo paragrafo eu sabia que era de teu agrado, que tinha a cara de minha rainha.
    beijus de devoção.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Agradeço a gentileza do link em seu blog, um espaço inteligente e muito bem elaborado.
    Vou te linkar de lá
    Beijos
    ACM (Bondage & Fetiches)

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